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Notícia
Superior Tribunal de Justiça Firma Entendimento Favorável ao Cultivo de Cannabis Para Fins Medicinais
No último dia 14 de junho, o Superior Tribunal de Justiça proferiu decisões, nos autos do RHC nº 147.169 e REsp nº 1.972.092, que autorizaram o autocultivo de cannabis sativa, com o fim de extrair o óleo derivado da planta, para utilização terapêutica, por pessoas munidas de prescrição médica.
Os precedentes conferem amparo jurídico aos pacientes que realizam a produção doméstica da cannabis sativa, de modo que o aproveitamento dos benefícios da planta, para fins medicinais, não se confunda com as condutas típicas do crime de tráfico de drogas, previsto no artigo 33, da Lei Federal nº 11.343/2006.
Do ponto de vista técnico, o entendimento dos Ministros foi materializado pela concessão de salvo-condutos, que consistem em documentação com força apta a impedir que qualquer órgão de persecução penal, como as Polícias Civil, Militar e Federal, ou Ministério Público Estadual e Federal, adotem embaraços ao cultivo de cannabis sativa, para uso exclusivo próprio, enquanto persistir a autorização médica.
Embora haja muito o que ser feito na correção das incongruências atreladas à política nacional antidrogas, essas recentes decisões representam uma conquista positiva, para se evitar que questões de saúde pública sejam equiparadas àquelas punidas com o encarceramento, conforme destacado pelo Ministro Relator Sebastião Reis Júnior no RHC nº 147.169: “Não podemos mais ficar no estado em que nos encontramos, de inércia total. A doutrina discute, o Judiciário tem medo de enfrentar e o Legislativo, infelizmente (...) Esse silêncio não pode mais ocorrer”.
Por outro lado, o discurso moralista contrário à utilização terapêutica da cannabis sativa passa a perder força junto ao Poder Judiciário, que ao analisar o tema, enfim fez prevalecer a ciência, a medicina e o discurso livre de julgamentos morais e preconceituosos, deixando em segundo plano as falsas verdades e o discurso eivado de dogmas que permeiam o tema, que não condiz com os tempos atuais.
Jurisprudência
STJ Decide que Desvios no Âmbito da Lei Rouanet Devem ser Punidos com Pena Prevista na Lei Federal 8.313/91, Não Sendo Aplicável a Pena do Crime de Estelionato
Julgados: REsp 1.894.105 e REsp 1.894.519
Na última semana, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça negou, por unanimidade, provimento a dois recursos especiais interpostos pelo Ministério Público Federal contra acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região, que, em sede de Habeas Corpus, concedeu a ordem para reclassificar a conduta de estelionato imputada a um empresário, para o crime previsto no artigo 40 da Lei Rouanet, bem como considerou inepta a denúncia em relação ao crime de associação criminosa.
A denúncia ofertada pelo Parquet Federal apontava a existência de uma organização criminosa composta por empresários, indicados como responsáveis por desviar R$ 21 milhões de reais em recursos públicos federais por meio da Lei Federal 8.313/1991, que oferece mecanismos de renúncia fiscal com a finalidade de estimular o apoio da iniciativa privada ao setor cultural. Em análise ao Habeas Corpus impetrado pela defesa técnica de um dos acusados, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região determinou o trancamento do processo em relação à suposta prática de associação criminosa, bem como reclassificou o crime de estelionato (pena de reclusão de 1 a 5 anos) para a conduta prevista no artigo 40 da Lei Rouanet, que define como crime “obter redução do imposto de renda utilizando-se fraudulentamente de qualquer benefício desta Lei”, punível com reclusão de 2 a 6 meses, e multa de vinte de 20% do valor do projeto,
Irresignado, o Ministério Público Federal interpôs recurso especial pleiteando o reestabelecimento de decisão de recebimento de denúncia pela prática do crime de estelionato praticado em detrimento de entidade de direito público (artigo 171, §3º do Código Penal), sob os argumentos de que (i) o delito previsto no artigo 40 da Lei Rouanet não abrangeria as condutas descritas na denúncia, que expõem a obtenção de vantagens ilícitas que ultrapassam a intenção meramente fiscal objeto de proteção pela norma; (ii) não seria possível aplicar o princípio da especialidade, pois os delitos não possuem natureza idêntica e tutelam bens jurídicos distintos, tendo o estelionato maior abrangência; e (iii) o acórdão que apreciou o Habeas Corpus teria contrariado os princípios da proporcionalidade e da proibição da proteção deficiente, pois, ainda que se admitisse que os tipos penais tutelam o mesmo bem jurídico, seria desproporcional o prevalecimento do artigo 40 da Lei Rouanet, ante o desequilíbrio entre a gravidade do crime a sanção penal respectiva (2 a 6 meses).
Em sede de julgamento, o Ministro Relator Rogério Schietti ponderou que, a despeito da diferença entre as penas impostas, o artigo 40 da Lei Rouanet deve prevalecer no caso concreto por ser norma especial em relação ao crime de estelionato, e que “não podemos interpretar a lei de acordo com a eventual desproporcionalidade, de modo a prejudicar o réu para imputar-lhe um crime punido com maior gravidade”. Com isso, a ação penal vai tramitar no Juizado Especial Federal Criminal, destinado a crimes de menor potencial ofensivo, cujas penas sejam cominadas a, no máximo, dois anos de reclusão.
Nesse sentido, a ponderação alcançada pela 6ª Turma do STJ agiu em consonância com os critérios adotados pelo sistema jurídico brasileiro para resolução do conflito aparente de normas (antinomia), já que o princípio da especialidade tem como finalidade precípua evitar o bis in idem, por meio da prevalência da norma especial sobre a geral. No caso, não se desconhece a necessidade de reprimir e punir desvios de dinheiro feitos no âmbito da Lei Rouanet, contudo, não é possível a aplicação de tipo penal mais gravoso ao acusado, quando há tipo penal específico que regula a conduta, sob pena de violação às regras do Processo Penal Democrático.
Legislação
Centrão Elabora PEC que Possibilitaria ao Legislativo Reverter Decisões do Supremo Tribunal Federal
Foi elaborada questionável Proposta de Emenda à Constituição (PEC), de autoria do deputado Domingos Sávio (PL), que permitiria aos Deputados e Senadores revisarem e anularem decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) nas hipóteses em que a decisão judicial não for unânime e “extrapole” os “limites constitucionais”.
A PEC deve ter pelo menos 171 votos para sua tramitação e, para ser aprovada, são necessários votos de 308 deputados e 49 senadores, sendo que as votações devem ser realizadas em dois turnos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.
De acordo com especialistas, a proposta de emenda não poderia ser objeto de deliberação, pois esbarraria na cláusula pétrea de separação dos Poderes, prevista no artigo 60, §4º, III, da Constituição Federal. A separação dos Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – é um mecanismo que busca descentralizar o poder e evitar abusos, na medida em que um poder é controlado pelo outro, com base na teoria denominada “freios e contrapesos” (Checks and Balances System), a qual foi consagrada por Montesquieu.
Segundo os defensores da PEC, que a denominaram de ‘PEC do Equilíbrio entre os Poderes’, a proposta serviria como medida para evitar o “ativismo judicial” por parte do Supremo Federal, que estaria extrapolando sua competência constitucional, discurso semelhante ao adotado pelo atual Presidente da República, ao criticar as decisões proferidas pelo STF.
Contudo, ao que parece, a PEC não tem função de equilibrar os Poderes, mas sim possui caráter autoritário e representa uma indevida interferência no Poder Judiciário, na medida em que o Poder Legislativo teria o poder de alterar decisões proferidas pela mais alta Corte do país, com base em critérios genéricos e discricionários, bastando tão somente que a decisão não tenha sido unânime e “extrapole limites constitucionais”, o que representaria violação não só ao princípio da separação dos poderes como ao próprio Estado Democrático de Direito.
Termômetro da Semana
Crimes Cibernéticos: Desafios ao Combate e à Prova de Materialidade
A conexão à internet é um recurso altamente vantajoso e, em contrapartida, capaz de impulsionar riscos de segurança pessoal e financeira na mesma medida. Com milhões de pessoas conectadas e a dificuldade de rastreio de informações, o campo aberto para a prática dos chamados crimes cibernéticos está em constante crescimento. Isso porque, por serem praticados por meio do uso da rede de computadores ou de dispositivos móveis conectados à internet, estes delitos são altamente dinâmicos e diversos, utilizando-se de soluções digitais para a obtenção de vantagens econômicas indevidas ou propagação de informações falsas e mal-intencionadas.
Nesse sentido, recentemente, o Ministério da Justiça e Segurança Pública do Governo Federal (MJSP) lançou o primeiro Plano Tático de Combate a Crimes Cibernéticos, traçando eixos temáticos para (i) prevenir e mitigar ameaças cibernéticas; (ii) gerenciar riscos decorrentes dos crimes cibernéticos; (iii) aprimorar a infraestrutura de combate a essas práticas delitivas; (iv) regulamentar a matéria; (v) desenvolver parcerias nacionais, a exemplo da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), e cooperação internacional no combate aos crimes cibernéticos; bem como (vi) padronizar e integrar as informações sobre o assunto; e (vii) estabelecer parâmetros de pesquisa, desenvolvimento, inovação e educação para enfrentamento aos crimes cibernéticos.
Além desses parâmetros gerais, o Plano prevê a construção de um banco de dados que contenha registros das ocorrências de crimes cibernéticos e de um programa de prevenção à prática de fraudes bancárias eletrônicas e golpes digitais no geral, contando com a capacitação de agentes de segurança para tal finalidade. Nesse ponto específico, considerando-se o crescimento exponencial das fraudes bancárias eletrônicas, impulsionadas pelo acesso digital às instituições financeiras e pela criação e disseminação do pagamento instantâneo brasileiro (Pix), o Plano prevê a celebração de Acordo de Cooperação Técnica entre a Polícia Federal, o MJSP e a Febraban, a fim de estimular o compartilhamento de informações e a repressão às práticas delitivas cibernéticas.
Na mesma linha, a Polícia Civil do Estado de São Paulo publicou Guias de Prevenção, elencando orientações para prevenção e procedimentos a serem adotados em caso de (i) clonagem de Whatsapp; (ii) pagamento de boleto falsificado; (iii) fraudes bancárias e práticas de phishing no geral, como transações fraudulentas realizadas por falso funcionário de instituição financeira ou falso motoboy, que retira o cartão bancário na casa da vítima, e envio de e-mails, links e SMS fraudulentos; (iv) compras em sites fraudulentos de comércio eletrônico; (v) falsos leilões ou falsos empréstimos; (vi) crimes contra a honra (calúnia, difamação ou injúria) praticados por meios digitais; (vii) sequestro de dados por meio do vírus ransonware; (viii) golpes sentimentais e de relacionamentos amorosos; (ix) sextorsão (ameaça de divulgação de vídeos ou imagens íntimas); e (x) transações fraudulentas via pagamentos por Pix.
Com diversas iniciativas de combate dos crimes cibernéticos, que impulsionam o sancionamento de legislação prevendo a tipificação específica destes delitos e a eles cominando penas mais duras, o lançamento de orientações à sua identificação e prevenção, bem como ao procedimento a ser adotado quando da verificação de sua prática, é evidente a necessidade de discussão do próprio processamento de referidos delitos, em especial para a comprovação de sua autoria e materialidade.
Especificamente no que tange à materialidade de referidos delitos, a prática acusatória mais comum para a demonstração do indício delitivo é a captura de tela (print screen) da conversa com o indivíduo fraudador, do site onde foi gerado o boleto falsificado ou da transferência bancária indevidamente realizada.
No entanto, é certo que a persecução penal, que deve partir da presunção de inocência do acusado e impor à acusação o ônus de comprovar a materialidade da infração penal alegada, não pode caminhar com base em prova sujeita à adulterações, manipulações e adquirida sem observância da devida extração e tratamento de evidências digitais (conforme regra técnica específica, a Norma ABNT NBR ISO/ IEC 27037:2013), insuficiência esta que não se supre pelo registro de ata notarial, em que pese a fé pública conferida ao documento, em decorrência da contaminação da aquisição da evidência.
Por essa razão, a fim de que não sejam admitidas ações penais cuja demonstração de materialidade seja insuficiente, nem condenados acusados sem prova que demonstre a prática ilícita, o incentivo ao combate aos crimes cibernéticos deve caminhar em conjunto com o impulsionamento da discussão e aplicação da extração adequada de evidências digitais, aptas a produzir efeitos probatórios apenas se observada e preservada, integralmente, a cadeia de custódia digital.