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STF e o julgamento de repercussão geral sobre o acesso da polícia a celulares


O Supremo Tribunal Federal enfrentará relevante discussão com repercussão geral descrita no Tema 977: "licitude da prova produzida durante o inquérito policial relativa ao acesso, sem autorização judicial, a registros e informações contidos em aparelho de telefone celular, relacionados à conduta delitiva e hábeis a identificar o agente do crime".

O julgamento que terá continuidade no Plenário da Suprema Corte tem como origem recurso extraordinário interposto pelo Ministério Público Estadual contra acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que absolveu acusado de roubo em razão do reconhecimento da ilicitude da prova produzida, na medida em que teria sido obtida mediante violação do sigilo dos dados e comunicações telefônicas.

No caso em análise, a identidade do réu foi determinada mediante a visualização do histórico de chamadas e armazenamento de fotografias de seu aparelho de telefone celular — que caiu no chão no momento da fuga — sem que tivesse a respectiva ordem judicial para acesso ao conteúdo do aparelho telefônico.

Dentro do contexto factual apresentado, o recurso interposto pelo Ministério Público Estadual defende a licitude do acesso aos registros e fotos de aparelho celular, alegando suposta inexistência de reserva de jurisdição para apreensão de bens relacionados ao fato delituoso.

Ao iniciar o julgamento, o ministro relator Dias Toffoli votou pelo provimento do recurso extraordinário, tendo fixado a seguinte tese: "é lícita a prova obtida pela autoridade policial, sem autorização judicial, mediante acesso a registro telefônico ou agenda de contatos de celular apreendido ato contínuo no local do crime atribuído ao acusado, não configurando esse acesso ofensa ao sigilo das comunicações, à intimidade ou à privacidade do indivíduo".

Por sua vez, na sequência do julgamento, os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin votaram pelo desprovimento do recurso, com a fixação de tese contrária ao sugerido pelo ministro relator: "o acesso a registro telefônico, agenda de contatos e demais dados contidos em aparelhos celulares apreendidos no local do crime atribuído ao acusado depende de prévia decisão judicial que justifique, com base em elementos concretos, a necessidade e a adequação da medida e delimite a sua abrangência à luz dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e ao sigilo das comunicações e dados dos indivíduos".

Em poucas palavras, a controvérsia jurídica que será enfrentada pela Suprema Corte, em abordagem macro, se divide em dois aspectos: utilitarismo versus legalidade.

Em primeiro lugar, importante esclarecer que o HC nº 91.867/PA (relator ministro Gilmar Mendes) — em que fora considerado lícito o acesso ao histórico de ligações telefônicas armazenados no aparelho celular — não pode ser considerado como precedente ao caso concreto em razão de distinguishing factual, na medida em que o referido Habeas Corpus foi julgado no distante ano de 2004, época em que os aparelhos celulares eram utilizados praticamente apenas para ligações telefônicas, situação muito distante dos atuais smartphones.

Desta forma, o mencionado julgado não é adequado para mensurar a amplitude e a vulnerabilidade da intimidade dos cidadãos com a hodierna tecnologia dos smartphones. Inclusive, em seu voto à época do julgamento do HC nº 91.867/PA, o próprio ministro Gilmar Mendes ressaltou que: "autoridades policiais não tiveram, em nenhum momento, acesso às conversas mantidas entre os pacientes e o executor do crime", o que diferencia a situação anteriormente julgada ao tema recém afetado pela repercussão geral.

Ao longo dos anos, com a evolução da interpretação do tema, os precedentes do Superior Tribunal de Justiça, dos tribunais estaduais e internacionais (Riley vs. California — EUA) estão se moldando no sentido de que o acesso aos dados do celular e conteúdo de aplicativos, sem ordem judicial, configura devassa indiscriminada e, consequentemente, violação à intimidade do agente, o que acarreta a ilicitude da prova.

Ao que tudo indica, no caso em exame, a autoridade policial teria acessado fotografias e histórico de chamadas do celular. Entretanto, com a capacidade de armazenamento dos atuais aparelhos de celular, como se pode garantir que não foram acessadas comunicações de mensagens instantâneas? O que, de fato, foi acessado: dado ou fluxo de comunicação? Impossível responder.

Mais que isso, tendo sido afetado o julgamento pela repercussão geral, não se pode desprezar os severos impactos que uma decisão do Supremo Tribunal Federal que venha a retirar a reserva de jurisdição para acesso de conteúdo armazenado em smartphone pode gerar na sociedade.

Com uma avaliação menos cândida e mais realista da dinâmica de funcionamento das investigações e abordagens policiais no Brasil, seria uma missão singela imaginar as possíveis arbitrariedades que ocorreriam justamente com a camada mais vulnerável da população brasileira, que poderia passar por incontáveis situações de abuso e violência estatal, com legitimação transversa da Suprema Corte.

As inovações tecnológicas e comportamento social dos usuários de smartphones exigem uma interpretação mais ampla e proporcional às garantias constitucionais da intimidade, privacidade e dignidade da pessoa humana, sob pena do utilitarismo judicial gerar um superdimensionamento da vigilância estatal, com consequentes excessos policialescos.

 

Texto publicado originalmente em ConJur, Estadão e Gazeta do Paraná (impresso).

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