Movimentação lembra uma operação de dólar cabo, apontam especialistas
Por: Valor Econômico
Ricardo Mendonça
O deputado estadual paulista Arthur do Val, conhecido por Mamãe Falei (sem partido) e seu colega Renan Santos, líder do Movimento Brasil Livre (MBL), poderão ser acusados do crime de evasão de divisas caso fique comprovada a transferência de dinheiro para a Eslováquia, país que faz divisa com a Ucrânia, na forma como eles a descreveram em vídeo divulgado em suas redes.
Arthur do Val e Renan viajaram à Ucrânia no início do mês em alegada ação de ajuda humanitária ao país, em guerra com a Rússia. Em “live” transmitida da Eslováquia no dia 1º, eles pediram doações para seus seguidores no Brasil. Recursos que, diziam, seriam destinados a ucranianos.
Em pelo menos duas ocasiões do vídeo, Renan afirma que o dinheiro recebido pelo MBL via Pix seria transferido para a conta de um brasileiro chamado Bruno que mora na Eslováquia. Esse Bruno, segundo ele, faria as compras de suprimentos no local para posterior entrega aos ucranianos.
“O Pix para mandar ajuda é suporte@mbl.org.br”, diz Renan no vídeo. “O dinheiro que vocês mandarem pelo Pix, esse dinheiro a gente vai retirar com o Bruno, que ele é brasileiro e ele mora na Eslovaquia. Entendeu? Ele [Bruno] vai receber na conta dele e esse dinheiro a gente vai mandar
Na avaliação do advogado Leonardo Avelar, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, o que Renan descreveu é “uma forma tosca de dólar cabo”. O artigo 22 da lei 7.492 de 1986, explica, descreve esse tipo de operação como evasão de divisas. Trata-se de um crime, diz a norma, com pena prevista de 2 a 6 anos de reclusão e multa.
“É uma forma transversa de troca de valores feita à margem do regulador cambial, o Banco Central, e à margem de tributações. O fato de ser uma doação, como eles afirmam, não descaracteriza a situação de crime”, diz Avelar.
A viagem de Arthur do Val e Renan chamou mais a atenção por uma sequência de áudios distribuídos pelo deputado a um grupo de amigos. Arthur do Val afirmou que as mulheres ucranianas eram fáceis por serem pobres. Entre outras manifestações de teor misógino, comparou a fila de refugiadas à fila de uma balada em São Paulo.
Em razão da péssima repercussão, Arthur do Val desistiu de sua pré-candidatura a governador, pediu desfiliação do Podemos depois que o partido já havia aberto um processo de expulsão e irá enfrentar mais de uma dezena de pedidos de cassação de seu mandato na Assembleia Legislativa.
A possibilidade de caracterização de evasão de divisas na operação anunciada pelo MBL também foi notada pelo jurista Lenio Streck, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS).
Streck escreveu sobre isso no Twitter após o MBL divulgar uma nota repudiando as falas de Arthur do Val e informando que o objetivo da viagem à Ucrânia “se cumpriu ao arrecadarmos mais de R$ 250 mil para os refugiados ucranianos, que foram e estão sendo distribuídos.”
Na ocasião, Streck afirmou que o MBL, por meio da nota, “confessa o crime do Artigo 22 da lei 7492: ‘Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País’”. Na sequência, cobrou investigação do Ministério Público Federal.
Naquela ocasião, Arthur do Val, Renan e o MBL já vinham sendo cobrados por uma prestação de contas das doações. Renan, porém, reagiu mal quando foi questionado a respeito disso pela deputada Janaina Pascoal, colega de Arthur do Val na Alesp: “Você é uma PORCA invejosa”, respondeu pelo Twitter. “Não vamos prestar contas pra você, ser ridículo”.
Três dias depois, o MBL divulgou um documento de 25 páginas intitulado “Missão Ucrânia prestação de contas” em que afirma ter recebido R$ 275.366,20 de 2.653 doadores entre os 1º e 4 de março.
Desse montante, informa o documento, a maior parte (R$ 211.829,58) foi doada no Brasil mesmo para uma entidade em Curitiba chamada Representação Central Ucraniano Brasileira. Outros R$ 40 mil, conforme o documento, foram “direcionados às compras na Ucrânia”. Um valor bem abaixo dos R$ 250 mil mencionados na nota do próprio MBL divulgada no dia 6.
Num dos trechos da “prestação de contas”, a entidade afirma que R$ 40 mil “foram destinados aos integrantes para a compra desses materiais” e que o valor gasto com os suprimentos chegou a R$ 43.746,62. “A diferença foi paga por outros brasileiros locais”.
Imagens de notas fiscais da Eslováquia foram reproduzidas para comprovar gastos feitos com o dinheiro arrecadado no Brasil. Mas não há nenhuma informação sobre como foi feita a transferência de R$ 40 mil para a Eslovaquia.
Renan e Do Val foram procurados por meio do MBL para falar sobre a suspeita de evasão de divisas. A assessoria do MBL afirmou genericamente que “foram adotadas as providencias legais pertinentes visando a transferência dos recursos mencionados”.
Depois, contrariando o vídeo e seu principal líder, disse que “por orientação de profissionais, este procedimento [descrito por Renan na ‘live’] não foi adotado”. Ante a pergunta de qual procedimento teria sido adotado, o representante da entidade finalizou dizendo que não conseguia mais “contato com a contabilidade”.
Texto publicado originalmente em Valor Econômico.