Parlamentar usou a tribuna da Câmara dos Deputados no Dia Internacional da Mulher para ironizar o feminismo e criticar “homens que se sentem mulheres” e tentam “roubar” seu lugar no mundo
Por: Estadão
Natália Santos
No Dia Internacional da Mulher, o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) usou a tribuna para criticar o feminismo e “homens que se sentem mulheres”. Utilizando uma peruca loura, o parlamentar se apresentou como “deputada Nikole” para dizer que o lugar das mulheres está sendo “roubado” por tais homens. Ele também ironizou o movimento por igualdade de direitos das mulheres e defendeu que elas “retomem sua feminilidade concebendo filhos e casando.
Especialistas ouvidos pelos Estadão afirmam que Nikolas infringiu a Lei 7.716/1989, que dispõe sobre crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Há dois anos, a mesma legislação vale para casos de homofobia e transfobia após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo o artigo 20 do documento, é crime “praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”.
O advogado criminalista Rodrigo Faucz afirma que ficou “bastante evidenciado” o delito cometido por Nikolas, já que o episódio aconteceu de forma pública. Segundo ele, cabe ao STF julgar o caso. “A partir desse entendimento do STF (de adicionar homofobia e transfobia à Lei 7.716/1989), o Nikolas fazer uma fala daquela demonstrando e incitando esse tipo de discriminação e preconceito, de forma muito aberta, deixa evidenciado que estamos falando de um crime que foi cometido de forma pública e aberta e, na explicação dele, até de forma recreativa”, disse.
O advogado criminalista Leonardo Magalhães Avelar afirma que a atitude de Nikolas “escancara faceta desrespeitosa e criminosa contra transgêneros”. “Importante rememorar que o Supremo Tribunal Federal, em emblemático julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão realizado no ano de 2019, enquadrou a homofobia e a transfobia como crime imprescritível e inafiançável previsto na Lei de Racismo”, disse.
O artigo 20 da Lei 7.716/1989 afirma que a punição para esse tipo de crime é de reclusão de um a três anos e multa, mas pode sofrer alterações, como explica Avelar. “Caso seja considerado o elevado alcance do discurso realizado no Plenário da Câmara dos Deputados, a pena pode chegar até cinco anos”, disse.
O segundo parágrafo do artigo 20 afirma que a pena pode aumentar caso o crime tenha sido cometido por “intermédio dos meios de comunicação social, de publicação em redes sociais, da rede mundial de computadores ou de publicação de qualquer natureza”, o que pode aumentar a reclusão para dois a cinco anos e multa. Esse parágrafo pode ser levado em consideração no julgamento, uma vez que a fala de Nikolas foi feita de forma pública durante sessão da Câmara dos Deputados, transmitida virtualmente pelas redes sociais da Casa.
Faucz explica que existe outro fator que pode também aumentar uma eventual pena de Nikolas, o inciso A do mesmo documento. Segundo o texto, “os crimes previstos nesta Lei terão as penas aumentadas de 1/3 (um terço) até a metade, quando ocorrerem em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”. A defesa do parlamentar é que a situação foi em tom de diversão.
Foro privilegiado
O responsável por julgar um eventual processo contra a atitude de Nikolas será o Supremo Tribunal Federal, que tem a competência de investigar eventuais crimes cometidos por congressistas. “Dependendo da pena aplicada pelo STF, ele pode, inclusive, ter a perda de mandato determinado como efeito da condenação”, afirma Faucz. Isso se dá pelo fato de que, segundo o Artigo 92 do Código Penal, a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo pode ocorrer quando “aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a quatro anos”.
Além da Lei 7.716/1989, Nikolas também pode ter infringido o Código de Ética da Câmara dos Deputados, no que diz respeito a respeitar a Constituição, as leis e as normas internas da Casa e do Congresso Nacional, e sobre exercer o mandato com dignidade e respeito à coisa pública e à vontade popular.
Nesta quarta-feira, 9, na tribuna, Nikolas começou o seu discurso afirmando que o uso da peruca era uma forma de conseguir espaço de fala durante o dia 8 de março “Hoje, o dia internacional das mulheres, a esquerda disse que eu não poderia falar porque eu não estava no meu local de fala, então eu solucionei esse problema aqui. Hoje, eu me sinto mulher, deputada Nikole”, disse ao defender que o lugar das mulheres está sendo “roubado” por homens que se sentem mulheres.
O parlamentar ainda afirmou que o feminismo “exalta mulheres que não fizeram nada pelas mulheres” e defendeu que as mulheres tenham outra postura: “Mulheres, retomem a sua feminilidade, tenham filhos, amem a maternidade. Formem a sua família, porque é dessa forma, vocês colocarão luz no mundo e serão, com certeza, mulheres valorosas”, disse.
Repercussão
Ainda nesta quarta-feira, a bancada do PSOL na Câmara, em conjunto com parlamentares de outros partidos, entraram com uma representação no Conselho de Ética da Casa contra o deputado mineiro. O grupo também enviou uma notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal, afirmando que Nikolas cometeu crime de transfobia.
A notícia-crime afirma que a imunidade parlamentar conferida a Nikolas não é absoluta, já que o impede de romper princípios previstos na lei. “Embora o Noticiado atualmente figure no cargo de Deputado Federal sendo, portanto, beneficiário da prerrogativa da imunidade parlamentar prevista na Constituição da República (art. 53, da CRFB/88), é importante pontuar que a referida imunidade não é absoluta. A Constituição não dá carta branca para que nenhum parlamentar fira a honra e a dignidade de quem quer que seja ou que pratique crimes e não seja responsabilizado por eles”, disse.
Também nesta quarta-feira, o Ministério Público Federal (MPF) acionou a Câmara dos Deputados para que o discurso feito por Nikolas seja apurado. Em ofício, a procuradora Luciana Loureiro pediu para a Mesa Diretora da Casa averiguar “suposta violação ética”. Ela ressalta que o parlamentar usou o tempo na tribuna para, “a pretexto de discursar sobre o Dia Internacional da Mulher, referir-se de forma desrespeitosa às mulheres em geral e ofensiva às mulheres trans em especial”.
O discurso de Nikolas foi repreendido pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL). “O plenário da Câmara dos Deputados não é palco para exibicionismo e muito menos discursos preconceituosos. Não admitirei o desrespeito contra ninguém”, escreveu Lira em sua rede social.
Nas redes sociais, o parlamentar reafirmou o seu discurso e afirmou que “não há transfobia em sua fala”. “Defendi o direito das mulheres de não perderem seu espaço nos esportes para trans - visto a diferença biológica - e de não ter um homem no banheiro feminino. Não há transfobia em minha fala. Elucidei o exemplo com uma peruca (chocante). O que passar disso é histeria e narrativa”, disse.
Nas eleições de 2022, Nikolas Ferreira foi o candidato à deputado federal mais votado do País sendo também o mais votado de Minas Gerais, com 1,47 milhão de votos.
Texto publicado originalmente em Estadão
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