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STJ Tranca Ação Penal por Ilicitude de Provas Obtidas a Partir de Colaboração Premiada Ilegal Realizada por Advogado
Aos 27 de setembro, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso em Habeas Corpus n.º 164.616/GO, reconheceu a ilicitude da colaboração premiada celebrada entre um advogado e o Ministério Público do Estado de Goiás e, consequentemente, por contaminação de todas as provas dela decorrentes, determinou o trancamento de ação penal em relação a todos os denunciados. O advogado, à época representante de uma construtora e incorporadora em recuperação judicial, apresentou - voluntariamente, sem qualquer provocação, e sem a existência de qualquer procedimento criminal até aquele momento – Notícia de Crime ao Ministério Público, e celebrou colaboração premiada com o GAECO/GO, por meio da qual foram fornecidos, clandestinamente, documentos e gravações ambientais obtidos em razão de sua atuação como advogado da construtora, em troca de não ser incluído nas investigações a serem iniciadas a partir de referido material. Com isso, instaurou-se Procedimento Investigatório Criminal para apuração de supostas práticas de crimes falimentares, lavagem de dinheiro e organização criminosa.
Nesse cenário, é certo que a ação penal foi ajuizada a partir de investigação originada em provas ilícitas, que violam frontalmente, sem justa causa, o sigilo profissional do advogado, infração prevista no artigo 34, VII, do Estatuto da Advocacia e da Ordem dos Advogados do Brasil (Lei nº 8.906/94). Isso porque, sendo o advogado, nos termos do artigo 133 da Constituição Federal, agente indispensável à administração da justiça, sua atuação se baseia na ética e na relação de confiança com seus clientes, sendo o sigilo profissional – que não é direito disponível do patrono – essencial para garantir o direito de defesa de seus clientes, e, portanto, o advogado proibido de prestar informações a ele confiadas em razão da profissão. Com a quebra dessas premissas básicas da atuação profissional, há desconfiança sistêmica na advocacia e descredibilidade de todo o sistema Judiciário. Conforme bem destacado pelo Ministro Relator, João Otávio de Noronha, “a democracia vai embora” quando se permite que um advogado delate seu próprio cliente.
Ademais, é certo que a conduta do advogado violou também os requisitos para realização da colaboração premiada, previstos na Lei Federal n.º 12.850/2013, vez que sequer existia procedimento investigatório criminal instaurado quando da realização do acordo. Nesse sentido, o instituto foi utilizado de modo indiscriminado e ilegal pelo advogado e pelos representantes do Ministério Público, sendo imperiosa sua anulação. No ponto, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que colaborações premiadas que não observem ou violem normas constitucionais ou infraconstitucionais devem ser consideradas nulas em sede de controle judicial (HC nº 142.205/PR).
Visando reforçar a garantia destes dois institutos – o sigilo profissional e a lisura das colaborações premiadas – a Lei Federal nº 14.365/22 acresceu ao Estatuto da Advocacia a expressa vedação ao advogado celebrar colaboração premiada contra quem seja ou tenha sido seu cliente, ensejando tal prática em infração disciplinar e infração penal (artigo 154, do Código Penal). Com isso, o legislador reforçou a necessidade de se assegurar o devido funcionamento do Poder Judiciário, considerando-se que um indivíduo não confessaria informações ou apresentaria documentos a seu patrono se, a qualquer momento, este pudesse entregá-los à Autoridade Policial ou ao Ministério Público, o que acarretaria um extremo prejuízo ao direito de defesa e ao próprio Estado Democrático de Direito.
Desse modo, acertadamente, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça anulou a colaboração premiada e determinou o desentranhamento das provas derivadas, todas contaminadas, bem como, ao final, determinou o trancamento da ação penal por ausência de elementos probatórios, sendo evidente a inexistência de acervo probatório suficiente para o início de persecução penal. A assertividade da decisão do Colegiado é inequívoca, vez que não se pode admitir a validade de um acordo de colaboração premiada fundado em violações legais. Caso fosse aceito, estaria sendo admitida a realização de persecução penal totalmente baseada em prova ilícita, violando o artigo 5º, inciso LVI, da Constituição Federal, e o artigo 157 do Código de Processo Penal, o que não pode admitir.
Jurisprudências
STJ Determina que Bloqueio de Bens Deve ser Proporcional às Cotas do Acusado em Fundo de Investimento
No âmbito da “Operação UNFAIR PLAY”, desdobramento da Operação Lava-Jato no Rio de Janeiro, um empresário foi acusado de participar de esquema ilícito ao prometer cerca de U$$ 2 milhões ao então governador do Rio de Janeiro e a dois representantes do Comitê Olímpico Brasileiro, com o objetivo de garantir a realização dos Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro. Como contrapartida da vantagem ilícita, a acusação aponta que o empresário recebeu do Comitê contrato em favor de empresa atuante no ramo de empreendimentos imobiliários.
No curso das investigações, sob o entendimento de que o empresário possuía vínculos societários com a empresa em questão, foi decretado o bloqueio da integralidade de um imóvel registrado em nome da pessoa jurídica. Contudo, na ocasião da medida cautelar, o juízo não se atentou ao fato de que o empresário detinha apenas 14% do Fundo de Investimentos em Participação (FIP) responsável pelo controle da empresa de empreendimentos imobiliários, que conta com outros 16 acionistas não envolvidos na acusação.
A questão chegou até a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que, ao julgar agravo regimental no recurso em mandado de segurança interposto pela pessoa jurídica, considerou a constrição irrazoável e desproporcional, vez que a maior parte do patrimônio afetado pertence a pessoas que não têm qualquer relação processual com a acusação.
Em seu voto, o Desembargador Relator Olindo Menezes proveu o agravo regimental para reduzir a constrição sobre o imóvel para o limite da cota do FIP pertencente ao empresário, a fim de afastar o evidente e inadmissível excesso cautelar, recobrando, assim, os requisitos da proporcionalidade e adequação da medida cautelar patrimonial.
Não se desconhece a crescente utilização de pessoas jurídicas para a consecução de práticas delitivas, especialmente em casos de lavagem de dinheiro, contudo, as medidas assecuratórias devem atender aos requisitos legais e constitucionais, a fim de evitar o desvirtuamento em uma espécie de asfixia financeira do investigado e de todos aqueles que possuem algum vínculo com ele. Nesse sentido, o acertado entendimento afastou a desproporcionalidade da medida imposta a outras 16 pessoas afetadas indevidamente pelo bloqueio, em observância aos princípios da razoabilidade, presunção de inocência e intranscendência da pena.
A Mera Condição de Sócia e Esposa de Acusado de Crime Não Autoriza o Oferecimento de Denúncia
Na última semana, a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento a um Recurso em Habeas Corpus interposto em favor de uma empresária, denunciada por associação criminosa, em razão do cargo de sócia que ocupava no âmbito de empresa presidida por seu marido, onde teria sido praticada fraude licitatória.
De acordo com a denúncia, a acusada era administradora e sócia da empresa com o acusado e se retirou dela para administrar individualmente uma outra pessoa jurídica, que veio a participar de um pregão vencido por seu marido. Nesse sentido, o Ministério Público entendeu que a acusada teria fornecido documentação para os dois processos licitatórios e assinado os laudos técnicos, ciente de que serviriam para instruir licitações fraudulentas, direcionadas para a empresa da qual havia se retirado.
Ao votar, o Ministro Relator Joel Ilan Paciornik ponderou que a denúncia estava devidamente instruída com elementos de prova que possibilitavam o exercício da ampla defesa e do contraditório. Ao acompanhar o entendimento, o Ministro Jorge Mussi destacou a atenção que a Corte tem dado aos casos em que se discute a responsabilidade penal de cônjuge que apenas figure como sócio da empresa no âmbito da qual a conduta típica teria sido realizada, e ponderou que essa circunstância não se exibe no caso em análise.
Ao divergir, o ministro João Otávio de Noronha destacou que toda a descrição da conduta típica trata de fatos praticados pelo réu, e que a acusação se limitou a pontuar que a acusada teria participado do esquema por ter conhecimento do trâmite licitatório, sem descrever de forma clara e objetiva sua intenção, o que torna “inadmissível o prosseguimento na ação penal com fundamento na teoria do domínio do fato”, “diante da ausência de descrição clara e objetiva do elemento volitivo da conduta e de lastro mínimo que aponte a autoria”, até porque “as circunstâncias objetivas de alguém ser sócio e exercer direção ou administração de empresa [envolvida em atividade criminosa] não é suficiente para autorizar qualquer presunção de culpa”.
Não raras são as vezes em que o órgão acusatório inclui familiares na denúncia, de forma indevida – sem a existência de indícios de autoria ou materialidade delitiva – como instrumento de pressão contra o principal investigado, o que não se admite em um Estado Democrático de Direito. Dessa forma, ao acompanhar o voto divergente, agiram acertadamente os demais Ministros integrantes do julgamento, na medida em que o oferecimento de denúncia pela mera condição de sócia e esposa de acusado não pode encontrar chancela no Judiciário, sob pena de incorrer em odiosa responsabilidade penal objetiva, vedada pelo artigo 13, do Código Penal.
Termômetro da Semana
Considerações Sobre a Disponibilização de Provas Favoráveis ao Exercício da Defesa Pelo Ministério Público
No último dia 22 de setembro, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região admitiu o recurso extraordinário interposto no âmbito de ação penal instaurada no contexto da extinta Operação Lava Jato. Por meio dessa via recursal, o Supremo Tribunal Federal se debruçará sobre possíveis violações a princípios constitucionais no caso concreto, dentre eles: a paridade de armas, o contraditório, ampla defesa, devido processo legal e a busca pela verdade processual.
Essas violações teriam ocorrido em contexto, no qual, após a condenação do réu em primeira instância, por supostas práticas de corrupção ativa, lavagem de dinheiro e pertencimento à organização criminosa, a defesa verificou que o Ministério Público Federal dispunha de provas aptas a desconstituírem a tese acusatória.
Isso porque, o Parquet Federal se valeu de e-mails trocados por executivos da Odebrecht, para justificar a narrativa acusatória fundada na hipótese de que o réu teria participado de pretensa fraude operada na contratação de estaleiros, pela Petrobras, por intermédio da empresa Sete Brasil, cujo diretor teria oferecido vantagem indevida ao acusado, para posterior repasse a dirigentes da empresa estatal. Contudo, de forma superveniente à prolação da sentença condenatória, a defesa se deparou com o fato de que a Procuradora da República dispunha de esclarecimentos prestados por executivos da Odebrecht, que vão de encontro com a denúncia, e que não tinham sido disponibilizadas durante a fase investigativa ou de instrução.
Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal apreciará o pedido de fixação de tese que confere aos órgãos do Ministério Público, sob pena de nulidade absoluta, revelarem a existência de provas essenciais ao exercício da defesa, inclusive aquelas que tiverem sido produzidas em procedimentos investigativos ou judiciais que lhe forem estranhos.
Como dialética de defesa, em sede recursal, argumentou-se que o tema já foi objeto de análise pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no julgamento do caso Brady vs Maryland, que contou com memorável voto do juiz William O. Douglas: “a sociedade não ganha apenas quando um culpado é condenado; ganha também quando os julgamentos criminais são justos.”
O tema também foi objeto do Projeto de Lei n.º 5282/2019, de autoria do então senador Antônio Anastasia, em conjunto com o professor Lenio Streck, que aguarda votação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal. Essa proposta legislativa tem o intuído de alterar o artigo 156, do Código de Processo Penal, para estabelecer a obrigatoriedade de o Ministério Público buscar a verdade dos fatos também a favor do indiciado ou acusado, nos termos da seguinte redação:“§ 1º Cabe ao Ministério Público, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito ou procedimento investigativo a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com este Código e a Constituição Federal, e, para esse efeito, investigar, de igual modo, na busca da verdade processual, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa”.
No contexto do Estado Democrático de Direito, essas movimentações legislativas e jurisprudenciais se encontram em consonância com as garantias asseguradas no texto constitucional sobretudo por estarem fundadas na preservação de direitos fundamentais assegurados aos investigados e réus durante a persecução penal. Além disso, esse entendimento também visa resgatar a função institucional do Ministério Público de atuar em prol do interesse público – custos legis (fiscal da lei) – evitando-se eventual parcialidade na produção probatória, que tende a resultar em condenações indevidas e descoladas da verdade real, movidas por um crescente anseio punitivista.