Estatuto da Criança e do Adolescente obriga a vacinação nos casos 'recomendados pelas autoridades sanitárias'; procurador-geral de São Paulo argumenta que pais podem perder a guarda dos filhos em casos extremos
Por: O Estado de S. Paulo
Levy Teles
O presidente Jair Bolsonaro (PL) afirmou em diferentes ocasiões que sua filha Laura, de 11 anos, não será vacinada contra a covid-19. O chefe do Executivo protagonizou um embate público entre o Executivo e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) após o órgão autorizar a aplicação do imunizante em crianças, no fim do ano passado.
A resistência do governo em dar andamento à imunização pediátrica tornou-se inclusive alvo de notícia-crime encaminhada esta semana pelo STF para análise da Procuradoria-Geral da República por prevaricação. A petição, apresentada por parlamentares, alega que Bolsonaro e o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, agiram para atrasar a vacinação infantil.
Bolsonaro tem defendido que a vacinação de crianças fique a critério dos pais e, na semana passada, disse inclusive ter conversado com o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, que teria garantido a ele que a imunização pediátrica não seria obrigatória.
Decisões anteriores do STF e recentes do próprio Lewandowski, porém, indicam que é possível haver sanções a pais que não vacinem seus filhos, como já sinalizou Bolsonaro. Embora não exista previsão legal específica sobre a covid 19, a principal referência sobre o tema é o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que estabelece ser “obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias”.
Destacando esse trecho do estatuto, o partido Rede Sustentabilidade pediu ao STF que garanta a vacinação contra a covid para o público infantil. No requerimento, a legenda argumenta que a posição do Ministério da Saúde de recomendar “de forma não obrigatória” a vacinação vai contra o que está disposto no ECA. O pedido também cita a Constituição, que diz que cabe ao Estado proteger as crianças, “inclusive das condutas de seus pais”.
O ministro Lewandowski acatou o pedido e determinou que os Ministérios Públicos dos Estados e do Distrito Federal fiscalizem o cumprimento da Constituição e do ECA. Um dos caminhos possíveis é que as escolas comuniquem aos conselhos tutelares a ocorrência de crianças não vacinadas em seus quadros, permitindo que os casos sejam encaminhados ao MP.
A decisão de Lewandowski levou em conta que, de acordo com o artigo 201 do ECA, cabe ao Ministério Público "zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias legais assegurados às crianças e adolescentes, promovendo as medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis" e "representar ao juízo visando à aplicação de penalidade por infrações cometidas contra as normas de proteção à infância e à juventude, sem prejuízo da promoção da responsabilidade civil e penal do infrator, quando cabível".
Guarda
O procurador-geral de Justiça de São Paulo, Mário Sarrubbo, disse à Rádio Eldorado que pais podem até perder a guarda de seus filhos caso se recusem a vaciná-los. Ele reiterou a interpretação de que a Constituição faz ressalvas à liberdade dos pais no que diz respeito à saúde infantil.
Sarrubbo explicou que a postura inicial do MP paulista em casos específicos será de diálogo entre o promotor e os responsáveis pelo menor, seguida de advertência por não imunizar a criança. “A partir daí, prosseguindo com ações injustificadas, procedimentos específicos serão aplicados, que podem chegar a punições mais severas, como advertências, multas e até a perda temporária do poder familiar, o que não esperamos que aconteça”, explicou.
O procurador-geral defendeu ainda que as escolas exijam apresentação da carteira de vacinação no ato da matrícula. “Sustentei oralmente no STF, há um ano, casos que os pais se recusavam a dar qualquer tipo de vacina aos filhos. O Supremo consolidou a tese no sentido de que os responsáveis são obrigados a vacinar e, portanto, as escolas devem exigir a carteirinha. Isso envolve a saúde coletiva. Uma vez vacinada, as crianças ajudam a frear a cadeia de contaminação”, disse.
Para o advogado criminalista Daniel Gerber, porém, os sistemas de Justiça criminal e da criança e do adolescente no País não conseguiriam aplicar punições a ponto de remover a guarda. “A suspensão temporária de guarda é uma ilusão jurídica”, disse. “Não é porque a norma é prevista que ela é aplicada num país como o nosso.” Para ele, não é possível hoje ainda, do ponto de vista legal, definir a vacina contra a covid como obrigatória.
Leonardo Avelar, advogado criminalista pós-graduado em Direito Penal Econômico pela FGV, argumenta que é indiscutível a importância de vacinar as crianças, mas acredita que, pelos parâmetros da intervenção mínima do direito penal, é melhor que a questão se resolva a nível administrativo, com a aplicação de multa.
Segundo Avelar, Bolsonaro poderia até ser alvo de um inquérito policial por se recusar a vacinar a filha, mas a aplicação de uma pena criminal a essa conduta "é difícil": “O Ministério Público pode ter um papel importante do ponto de vista administrativo e do inquérito civil”, afirmou o advogado ao Estadão. “Mas isso deve ficar restrito ao âmbito administrativo e no âmbito de punições do ECA.”
Texto publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.