top of page

Provocações do Direito Penal 5G


O decreto 9.854/2019 instituiu o Plano Nacional de Internet das Coisas, pelo qual se buscou lançar os princípios que devem guiar o desenvolvimento da matéria no país. Ainda que pouco propositivo, pode ser considerado um primeiro passo no início dos debates sobre a internet das coisas. A movimentação já serve de convite para algumas provocações iniciais, especialmente quanto à interface entre essas inovações tecnológicas e a tutela de novas condutas por meio do Direito Penal.


A inovação tecnológica cria necessidades cotidianas, sem termos o devido tempo (ou cautela) de medir com precisão os riscos delas decorrentes. É essa a premissa central do sociólogo alemão Ulrich Beck, em seu clássico estudo Sociedade de Risco Mundial, em que alega vivermos em uma sociedade marcada pela contínua contenção de riscos criados em uma revolução tecnológica ininterrupta. Dentre os diversos reflexos dessa perda do controle, o autor bem nos lembra do que veio a ser a energia nuclear, inicialmente trazida como a grande solução para um momento de grande necessidade de geração de energia, mas cujo elevado risco só foi mensurado com as sucessivas tragédias.


Dentre os grandes marcos do avanço social em nosso passado próximo - para os quais os riscos ainda seguem sendo mensurados em sua exatidão - , recai à internet o título de grande símbolo desse movimento, o que a torna um marco disruptivo que já, há alguns anos, monopoliza a atenção de cientistas especializados em tecnologia e, talvez tarde demais, deverá ocupar os operadores do Direito.


O avanço da chamada tecnologia 5G, pela qual o acesso sem fio à internet pode ser cerca de cem vezes mais rápido do que as tecnologias atuais, se traduz não apenas na capacidade de baixarmos filmes de duas horas em menos de quatro segundos, mas em toda uma série de novos serviços e produtos que poderão ser desenvolvidos em uma rede de tamanha capacidade.


Somando essa potencialidade ao progressivo aperfeiçoamento da inteligência artificial - ilustrada nos avanços recentes pela configuração de redes neurais para a aprendizagem de máquinas - podemos estar à beira de uma nova mudança envolvendo a chamada internet das coisas.


O aludido conceito não é novo e trata do fenômeno pelo qual pequenos objetos do nosso cotidiano passam a ser conectados em rede, podendo executar tarefas remotamente (de forma autônoma ou programada) em um largo fluxo de envio e recebimento de dados. É o exemplo de eletrodomésticos controlados pelo celular, ou ainda dos polêmicos carros sem motorista.


Com o avanço da rede 5G, tamanho potencial poderá ser multiplicado, em uma nova revolução industrial, pela qual os objetos mais banais estarão conectados em rede e controlados por computador.


Próximos de tamanho impacto, os riscos decorrentes são igualmente imensuráveis. É possível supor que os crimes cibernéticos hoje recorrentes assumirão uma dimensão ainda maior, com um potencial de dano que ultrapassa nosso conteúdo em rede para alcançar também os objetos conectados à nossa volta.


Mais do que isso, teremos uma nova e maciça série de dados sensíveis em trânsito. Em um exemplo banal (porém real), já são estudadas geladeiras capazes de identificar quais objetos estão em falta e realizar a compra dos itens diretamente no website de um supermercado. O que nos seria uma comodidade, pode facilmente se transformar em uma brecha para ataques visando a obtenção dos dados bancários.


Saindo de uma leitura particularizada, já há enorme preocupação com a segurança desses dados a nível governamental, sendo esta umas das razões para o recente embate entre o governo norte-americano e conhecida empresa chinesa, em meio às crescentes acusações de espionagem internacional.


Além do ponto de vista de segurança das aplicações, a própria forma com a qual tal inteligência computacional irá se comportar deverá ser de importância para o Direito Penal. No caso mencionado dos carros conduzidos por computador, a possibilidade de incidentes traz uma série de considerações sobre a responsabilidade no caso de acidentes fatais. Ainda sob a ótica da imputação penal, debate-se a responsabilidade pela geração autônoma de conteúdo difamador, como ocorreu na peculiar experiência do Tay; um perfil de inteligência artificial criado por uma empresa de software que reproduzia conteúdos racistas.


Tais categorias tratam de condutas classicamente relacionadas à seara criminal, mas cuja impossibilidade de se determinar o elemento subjetivo impediria, em um primeiro momento, a imputação criminal ao programador; mormente, pela inviabilidade de aplicação da responsabilidade penal objetiva.


Nossos anos de vivência em uma sociedade de risco têm sido ilustrativos de um Direito Penal relegado à condição de um gerente de riscos, com cada vez mais crimes de perigo abstrato, categorias abertas de imputação, nexos de causalidade medidos pelo risco tomado e tudo o mais que resume à noção de um Direito Penal de Perigo.


Como facilmente verificado, nenhuma dessas medidas punitivistas vêm sendo suficientes para que se previna um crime, diminua sua incidência ou se puna com eficiência. No entorno das novas tecnologias, e dos riscos aqui anunciados, cabe aos experts - tanto os de tecnologia, quanto os de direito - um esforço coletivo para melhor delimitar todas suas potencialidades, criando padrões seguros de inovação que poderão ser seguidos em uma tentativa de evolução tecnológica consciente.


Para além de standards de conduta - visando sempre a tutela de danos pela via do Direito Civil e não Penal - a transparência nos processos de programação adotados vem sendo outro elemento de forte debate para um avanço saudável, bem como, e talvez ainda mais importante, a regulação da matéria pela via do setor privado, em uma lógica na qual as próprias autoridades do setor - aquelas que mais intensamente conhecem das especificidades da matéria - poderão melhor delimitar os padrões e punições efetivos, sem sufocar a inovação tecnológica.


A rigor, não podemos esperar a chegada dos problemas decorrentes da inovação para, como habitualmente, respondermos com o que há de mais arcaico em nosso sistema jurídico. A resposta gerencialista de riscos pelo Direito Penal não faz qualquer bem para a inovação, muito menos para a dogmática penal, que segue cada vez mais alinhada à insegurança jurídica. Se a chegada anunciada da revolução 5G nos é um aviso de mudanças radicais na sociedade, que seja também uma chamada à racionalidade, permitindo-se retornar o Direito Penal à ultima ratio, de onde jamais deveria ter saído.

 

Texto publicado originalmente em Migalhas.

bottom of page